—Onde estão os meus óculos?! Todo dia isso! Aff!
—Aqui!
—Quem disse isso?
—Eu!
—Eu quem?
—A lagartixa!
Lucila apertou os olhos, tentando focar na direção da voz. A imagem, algo embaçada, provocou asco:
—Sai já daí! Larga meus óculos, bicho peçonhento!
—Ledo engano, não possuo veneno nem peçonha!
—Não?! Jurava que sim, bem, não importa, é um bicho sujo e quero que tire as patas dos meus óculos!
—Se minhas patas estão sujas, não me admira, você já parou para olhar a sujeira desse quarto?
—Tudo é minha culpa?!
—Se você quer colocar as coisas nesses termos, fique à vontade, porém, um pouco de autocrítica vai bem. Por que se ofender?
—Porque sou sempre criticada!
—Por quem?
—As pessoas, ora!
—Não sei quem são “as pessoas”, só conheço você, se bem que pelo exemplo...
—Está vendo? Até você, um verme, me critica!
—Verme?! Faltou às aulas de biologia, foi? Sou um réptil, e dos mais úteis, enquanto você dorme à noite, protejo você do ataque dos mosquitos e das aranhas, deliciosas, aliás, mas isso não vem ao caso agora. Por que a opinião dos outros te importa?
— Sou incompreendida!
—Olha quem acabou de me chamar de verme peçonhento falando de incompreensão...
—Ok, eu admito, errei, mas você me assustou, aparecendo assim, de repente.
—Como de repente? Eu vivo nesse quarto há anos, nasci naquela fresta ali da janela. E você que é a ignorada?
—Ah, preciso sair um pouco de casa...
—Quando sair, pode deixar as janelas fechadas, por gentileza? Tenho hábitos noturnos... Gostava mais quando você saía o dia todo. Quando esse home office vai acabar?
—Espero que não acabe, odiava sentar o dia todo naquela sala cheia de gente, me medindo de cima à baixo...
—Olha esse ego, nem tudo é sobre você.
—É difícil se adaptar.
—Dificuldades? Eu preciso lamber meu olho porque não tenho pálpebras e você vem me falar de dificuldade? Presta atenção no meu olhão, ó — mostrou.
—Que nada, é até bonitinho...
—Instantes atrás você me chamou de verme...
—Deixa de ser ressentida, credo! Não vai me deixar esquecer disso? Isso foi antes da gente conversar.
—Bingo! Então você precisa conversar mais.
—Com quem? Eu estou dialogando com uma lagartixa!
—Você tem um ponto...
—O que você faria, no meu lugar?
—O que eu faço não serve, basicamente eu utilizo a técnica “senta-e-espera”, você tem feito isso há tempos e, obviamente, não tem funcionado. Que tal tentar fazer alguma coisa diferente? Agora tenho que ir, preciso tirar um cochilo até a noite.
—Espera! Posso tirar uma foto sua? Para lembrar da nossa conversa. Vai, espera só mais um pouquinho...
—Ok, mas pega o meu melhor ângulo...
—Tirei — sorriu, mas o som do celular tocando exigiu sua atenção — só um instante que vou atender e...
A lagartixa tinha sumido, sobre a cômoda, apenas o par de óculos preenchia o vazio. A voz do outro lado repetia o convite que já fizera outras vezes, sem sucesso — dar uma volta, caminhar um pouco e jogar conversa fora?
—Claro, adoraria!
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