Era uma vez dois verbos que competiam entre si para saber quem era mais importante para a felicidade do ser humano, o Ter e o Fazer. Depois de muito discutir e inconformados com a dúvida, foram procurar o linguista, entendido de palavras como era, ele deveria saber. O linguista pensou um pouco e propôs fazerem juntos uma reflexão. Começou dizendo:
—Para muitos, ter, é a diferença entre sobreviver ou não. Ter ou não comida no prato, ter ou não um lugar para se abrigar e praticar o distanciamento social, ter ou não condições de higiene, ter ou não uma vaga numa UTI. Ponto para o Ter! Indiscutível, não é?
O Fazer ficou meio emburrado, mas não tinha como discordar. Apelou, entretanto para as circunstâncias:
—Também, nesses tempos de pandemia...
— Não é bem verdade, Fazer — advertiu o linguista — mesmo sem pandemia o Ter teria pontos aqui.
O Fazer resmungou algo ininteligível e o Ter exibiu um sorriso confiante.
—Vamos olhar um pouquinho para o Fazer, agora — prosseguiu o linguista — nas mesmas circunstâncias, para sermos justos. O que faz diferença? Fazer distribuição de alimento, fazer ações de apoio psicossocial, fazer gentilezas para o outro, fazer planos para o futuro...
O Fazer já ostentava um ar de superioridade, quando o Ter atacou:
—Fazer desserviços divulgando fake news e desacreditando a ciência, fazer festa e aglomeração, fazer pouco caso das mortes...
—Fazer vacinação, fazer plantão, fazer boa informação — defendeu-se o Fazer, botando a língua para fora, malcriado.
—Calma lá, vocês dois — arguiu o linguista — vamos conversar civilizadamente! Discordar não significa brigar...
Amuados, os dois aquietaram-se e o linguista continuou:
—O Ter é capaz de impulsionar muito a evolução da humanidade, vejam só, ter recursos para o desenvolvimento científico, tecnológico, conhecimento humano e biológico! — e antes que o Fazer dissesse qualquer coisa, completou — porém, precisa ver o que se fará com isso, precisa fazer pesquisa, precisa fazer diferença na vida de todos!
—Ah, mas carrão, casão, um montão de brinquedos, só tendo para saber como é — os olhos do Ter brilharam de empolgação.
Fazer baixou os olhos, nessa não conseguia competir, mas o linguista ponderou:
—Verdade, ter um monte de coisas é bom mesmo, é ótimo, porém, muitas delas podemos fazer com nossas próprias mãos, enfeitar uma pequena casa, construir os próprios brinquedos, é muito recompensador. Fazer o bem sem olhar a quem, também.
—Então, qual de nós é melhor, fala logo, linguista — exigiu o Ter, sempre com urgência.
—Deixa ele falar, tem coisas que se faz com calma... — repreendeu o Fazer, por natureza mais paciente.
—Vou falar e prestem bem atenção! Ainda não entenderam? A humanidade precisa de vocês dois, equilibradamente. Ter, apenas, leva ao egoísmo, ao excesso, à inatividade e à frustração. É preciso saber o que fazer com o que se tem. Por outro lado, ter, ainda que pouco, é imprescindível para a vida e, quando é bastante, permite se faça muita coisa. Portanto, se querem a felicidade da humanidade, permaneçam sempre unidos...
—Pai!! — chamou a voz no andar de baixo — contando histórias de novo? Não disse que ia ajudar o Paulinho com a lição de casa?
—Estamos estudando os verbos, mãe — se apressou em defender o menino, e completou baixinho — como é bom ter um avô para fazer as lições comigo, é bem mais divertido!
O velho linguista, satisfeito, apenas sorriu e beijou o neto.
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