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Milagre

Estava ficando cada vez pior!

—Que desgraça! – vociferou entredentes. O sujeito na sua frente, com a camisa ainda pingando sangue, simplesmente revivera e tentava se arrastar para trás do sofá de onde há poucos instantes Tobias Tico-tico o arrancara a força de bala.

Tentou de novo. Com calma. Mirou certinho e disparou. O estrago foi grande, constatou colocando o dedo na ferida, agora sim, não teria conserto, tranquilizou-se, e tratou de sair pelos fundos, já ouvindo o som das sirenes. Alguém alertara a polícia. Andou sossegado até o seu barraco. Não ficava longe. Os que cruzaram seu caminho, logo desviavam e mantinham distância. Muitos o conheciam e temiam. Outros o evitavam pela aparência bizarra: alto e forte, cabelos longos e desgrenhados e ainda uma cicatriz que cortava todo um lado do rosto.

Não ligava para a sua aparência, sua reputação era a única vaidade que se permitia. Nunca antes havia fracassado na sua atividade. Porém, de um mês para cá, já era a terceira vez que falhava em mandar os sujeitos para o inferno! Eles teimavam em não morrer. Desse jeito, logo ficaria desacreditado. Suspirou fundo, aborrecido, e tratou de aquecer a comida sobre o fogão, tomou um banho e dormiu, com a consciência tranquila do trabalho cumprido, tinha demorado mais do que de costume, mas, afinal, tinha dado cabo no Beto Torto.

Horas mais tarde despertou e ligou a TV. Logo na primeira notícia que viu estavam falando do Beto no hospital, vivinho.

—Ah não, só pode ser brincadeira! Matei ele DUAS vezes!

Precisava ver de perto o desgraçado. Colocou sua melhor roupa, fez a barba e molhou o cabelo, amarrando as madeixas rebeldes. Não foi difícil chegar à UTI misturado aos demais visitantes do horário. Na porta da unidade intensiva, a enfermeira avisou que apenas um familiar poderia entrar de cada vez, fez as orientações de praxe e começou a deixar entrar, um por um. Tobias olhou em volta, como imaginava, ninguém apareceu para visitar o traste.

Postou-se ao lado da cama. Beto Torto parecia estar dormindo, o oxigênio no nariz e todos aqueles fios ligados no aparelho. A aparência estava até boa, nem parecia que tinha alguma coisa, a não ser pelas faixas no peito e na cabeça. A campainha disparou e logo veio a enfermeira.

—Algum problema, moça?

—Não, está tudo certo, apenas a medicação que terminou e o aparelho avisa. O senhor é parente dele?

—Amigo. E como ele está?

—Está ótimo! Considerando o jeito que chegou aqui ontem e já vai para o quarto! Um milagre, eu diria.

Ele deu um sorriso fraco, disfarçando a impaciência, e ia perguntar mais alguma coisa quando o paciente ao lado começou a convulsionar. A enfermeira chamou o colega pedindo medicação e solicitou a ajuda de Tobias:

—Desculpe, me ajude, por favor, estamos com pouco pessoal, segura aqui, desse jeito! De novo, coitado do seu Paco, uma hora não aguenta esses ataques...

No que Tobias sustentou o velhinho de lado ele imediatamente se acalmou, os tremores diminuíram, os olhos desembaçaram e a respiração normalizou. Até o desenho dos batimentos cardíacos no monitor se tornou regular.

O outro enfermeiro chegou correndo empunhando a seringa, mas diante do que viu, ralhou com a colega:

—Você está louca Tereza?! Me fazer largar o outro paciente que está nas últimas por nada?!

—Ele estava convulsionando, eu juro, esse homem aqui viu, como é mesmo o nome do senhor?

—Tobias.

—Seu Tobias aqui não me deixa mentir...

Sacudindo a cabeça, o enfermeiro virou as costas sem dizer mais nada e foi cuidar de outras emergências.

Tereza acomodou o paciente idoso da melhor forma possível. Após o ataque que cessara misteriosamente, ele parecia mais bem disposto, sorriu e até pediu num sussurro:

—Tem gelatina?

Tobias deixou a UTI mais desanimado do que entrou. Aquilo não era possível! Tinha que ter uma explicação! Um tipo de doença às avessas! Esse pensamento lhe deu uma ideia. Circulou por ali até encontrar o que queria. Ainda tinha uns quinze minutos antes que encerasse o horário de visitas. Tempo suficiente para perguntar o que precisava.

—Doutor, um minuto que tenho uma pergunta...

O médico, cujo crachá dizia “Dr. José Marcos Cirurgião”, o ignorou deliberadamente. Fervendo de raiva, Tobias o seguiu para encontrá-lo no final do corredor, tomando cafezinho. Encostou nele e comprimiu a faca firmemente por baixo da costela:

—Se o senhor sabe usar um bisturi, eu também sei. Então, entra de bico calado aí nessa sala que eu preciso fazer umas perguntas.

Branco como papel, o médico se viu empurrado para uma dispensa. Tobias trancou a porta e falou calmamente:

—Se assossegue que não precisa ter medo, não. Eu estava pedindo com educação, mas o senhor fez que nem me viu. Então, teve que ser desse jeito...

Mais calmo, o cirurgião perguntou:

—O que é que você quer saber?

—Um homem que está na UTI, entrou ontem, com uma bala na cabeça, como é que um sujeito desses pode estar vivo?

—Não sei detalhes da história, eu só entrei hoje de manhã no plantão, mas parece que é um daqueles casos que a medicina não consegue explicar. A bala praticamente saiu por ela mesma, a hemorragia parou, a cicatrização está rápida... O que importa é que ele se salvou, não é mesmo? – e sorriu um sorriso amarelo.

—Esse é problema! Era para ele estar morto! Eu mesmo pus a bala ali!

O doutor fechou a cara e se afastou, com medo.

—Não se assuste não, doutor, que só dou cabo de ruindade, que nem esse tal aí. Mas de uns dias para cá, está tudo ao contrário, o sujeito pode estar estrebuchando, quando eu toco nele, revive! O senhor acha que se eu usar umas luvas resolve?

José Marcos tentou articular uma resposta, mas ela não veio.

—O senhor não está acreditando em mim, acha que eu sou louco? Pois eu provo. Me dá qualquer um que acabou de morrer que eu trago de volta!

—Não precisa... - tentou argumentar o médico, mas Tobias já o puxava para fora pelo avental, arrastando-o de volta ao corredor.

Andaram um pouco e não muito distante deram com uma equipe que tentava inutilmente fazer a ressuscitação num paciente ainda jovem. Muito esforço, massagem cardíaca vigorosa, choques elétricos e nada. Frustrados, desistiram e começaram a deixar o local. No monitor cardíaco, apenas uma linha reta. Tobias se aproximou, estando acompanhado do médico, ninguém questionou. Discretamente, segurou o pé do paciente por alguns instantes e logo se ouviu o som característicos de quem busca o ar. Deixou o quarto junto com o cirurgião que agora o acompanhava espontaneamente.

—Eu vi, mas ainda custo acreditar...

—Pois pode acreditar, doutor, é verdade.

—Você é algum tipo de místico, médium?

—Não! Claro que não! Deus me livre!

—Aconteceu alguma coisa diferente, bateu a cabeça, um acidente, um trauma?

—Nada! O que é que eu tenho, doutor?

—Não sei, como é que eu vou saber? A gente não aprende essas coisas na faculdade. O que você fez foi um milagre!

—Não tem nada que o senhor possa fazer por mim?

O médico coçou a barba rala:

—Talvez uns exames. Uma tomografia, uma ressonância...

Tobias agradeceu, mas não tinha interesse. Deixou cabisbaixo o hospital, matutando o que o doutor dissera... Um médium!

Foi procurar o Tonico Reza Braba – uma mistura de benzedor, guru e vidente – muito conceituado na comunidade. O que nada mais dava jeito, Tonico dava. Bateu na porta, algo ansioso. Não se sentia muito à vontade naquele tipo de ambiente. Tonico abriu a porta, envolto numa aura de incenso e portando um ramo de ervas de corte:

—Cruz credo! Não acreditei quando olhei lá de cima e vi que era você! O que você veio fazer aqui com essa alma carregada?

Tobias não titubeou, foi empurrando o vidente para dentro e fechou a porta com força. Tonico arregalou os olhos e se tremeu todo, conhecia o ofício do visitante:

—Valha-me Deus que meu dia chegou!

—Sossega que hoje não vim por você, mas vim por mim. Tem uma coisa muito estranha me acontecendo. Todo mundo que eu mato, volta à vida, mesmo os que eu não dei cabo, se bobear e encostar, o sujeite revive – concluiu com um arrepio e um olhar de horror.

Tonico, experiente, percebeu a fragilidade do outro e recobrou a confiança. Sentindo-se no controle, assumiu ares superiores e convidou:

—Vamos passar para a sala de atendimento – e sem esperar se dirigiu para os fundos. Afastou a cortina tilintante, sois, luas e sinos de metal pendurados, sentou à mesa paramentada com toalha branca, copo d’água, vela de sete dias e um baralho de tarô desbotado pelo uso. Fez um sinal para que Tobias se acomodasse à sua frente e concentrado, balbuciando ladainhas incompreensíveis, embaralhou as cartas e ofereceu para que o outro cortasse.

Algo ansioso, Tobias fez o solicitado. Tonico tirou três cartas, abriu sobre a mesa e as observou atentamente. De vez em quando soltava um “oh”.

—O que foi?! Fala de uma vez!

—Calma! Você acha que é fácil traduzir o invisível?! – juntou tudo, embaralhou de novo – tira mais três – ordenou.

Submisso, Tobias obedeceu calado.

Por fim, ao que pareceu uma eternidade, o místico se pronunciou:

—É um caso de intercessão direta! Nunca vi dessas, mas já ouvi contar que existe.

—Intercessão de quem?

Tonico apontou para o alto:

—Vem de cima, só o que eu sei. Não é coisa que se pode desfazer. Não tem volta, você nunca mais vai matar ninguém. Só vai dar vida.

—Dar vida o quê? Você me respeite que te acabo agora mesmo e nem teus guias vão te salvar...

—Tá vendo, é por esse tipo de coisa que você que se enrascou.

—Deixa de ser moleque que te meto a faca na barriga agora mesmo.

—Não vai conseguir me matar, eu vi isso aq...

A mão de Tobias já apertava o pescoço do outro:

—Posso até não conseguir matar, mas vai doer um bocado! Você precisa me ajudar!

—Não tem como – ciciou Tonico, quase sem voz.

Suspirando, Tobias soltou a mão, não adiantava mesmo e, por via das dúvidas, melhor não mexer com quem entende do além.

—Quanto te devo? – indicou o baralho aberto sobre a mesa.

—Nada não, é por conta da casa.

Saiu de lá mais cismado do que entrou. Para onde ir agora? A quem pedir socorro? O médico não sabia de nada, o vidente dizia que não tinha o que fazer. Pensou um pouco. Será que com o padre tinha uma chance? Não tinha nada a perder, pior do que estava não podia ficar. Tocou para a igreja mais próxima. O padre não estava, tinha sido chamado para ministrar uma extrema unção no hospital. Deu de ombros, não era para ser. Tentou o pastor. O religioso o recebeu muito bem e o escutou com atenção, mas por mais que lhe explicasse o acontecido, o ministro insistia que era uma benção milagrosa e reiteradamente ofereceu o batismo para que Tobias passasse a integrar a congregação:

—Aceite a ablução! Será um exemplo magnífico de redenção!

Respondeu apenas com um aceno e deixou o templo. Resolveu voltar ao hospital para tentar encontrar o padre. O assunto era urgente, o quanto antes resolvesse, melhor. Foi achá-lo concluindo o sacramento. A família em torno da senhora septuagenária chorava copiosamente. Ignorou a todos e agarrou na batina do padre, implorando:

—Pelo amor de Deus me ajude!

—Já estou terminando, meu filho! Espere um pouco!

—O senhor não está entendendo – ele já perdia a compostura - é caso de vida ou morte!

O padre o ignorou e voltou a se concentrar nas orações. A paciente iniciava os estertores finais.

Tobias, impaciente, empurrou o religioso para o lado, agarrou nas mãos da mulher, que rapidamente regularizou a respiração. Diante do olhar incrédulo dos presentes, a senhora abriu os olhos e sorriu.

—Pronto, padre, seus serviços não são mais necessários. Vai me ajudar agora?!

Mudo de espanto, ele foi acompanhando Tobias na direção do corredor, mas nem lá puderam falar. Uma aglomeração de pessoas logo foi se formando, pacientes, funcionários, também pessoas que esperavam há horas pelo atendimento médico e decidiram jogar fora as senhas para apostar no milagreiro.

Tobias deixou o hospital correndo, com uma multidão no seu encalço. Conseguiu chegar no seu barraco e se trancou do jeito que pode. Podia escutar as vozes, pedidos de socorro, súplicas de todo o tipo. Alguns iniciaram uma reza, outro grupo cantava louvores. E o barulho e as cantilenas só aumentavam.

Tomado de revolta, pegou o seu melhor canivete, já que munição estava em falta. Se alguma força oculta intentava em reviver seus mortos, queria ver se ela dava conta de um bando de gente ao mesmo tempo! Ele era um assassino e pronto. Não um salvador. Desde o pai abusador, o padrasto que espancava sua mãe, o chefe do tráfico que o ameaçava de morte na penitenciária e uma longa lista de delinquentes, ele sempre matava. Não seria agora que ia mudar.

Respirou profundamente e se preparou para sair. Destrancando a porta de uma vez, se precipitou para fora.

Não estava preparado para o que viu. Onde o olhar alcançava, viu rostos ansiosos, meio esperança, meio sofrimento. A noite chegara e cada um iluminava a ruela como podia, celulares, velas, isqueiros. Se rendeu à força da imagem e lentamente foi abaixando a lâmina afiada, jogando-a de volta para dentro. Um movimento que começou lá atrás chamou sua atenção. De forma progressiva e ordenada a multidão foi bipartindo, abrindo um estreito corredor humano. Não identificou o motivo até que ele se aproximou e parou bem à sua frente. Uma jovem mãe, pouco mais do que uma adolescente, trazia nos braços um bebê inerte. Sem dizer uma palavra o ergueu na direção de Tobias. Seu olhar entre lágrimas fazia um apelo mudo.

Tocado pela visão daquele inocente sem vida, Tobias se aproximou e, pela primeira vez, desejou, do fundo de sua alma, que fosse capaz de devolver a vida a alguém. Hesitante, trêmulo de emoção, tocou a criança, suas grandes mãos quase cobrindo todo o corpinho. Ironia, justo naquele caso, sua recém adquirida habilidade não parecia funcionar. Indagou há quanto tempo ocorrera o óbito.

—Quase uma hora – respondeu a mãe desesperançada – eu vi você no hospital e corri com meu filho, mas atravessar esse mar de gente demorou muito...

Inconformado, Tobias tentou de novo. O silêncio era absoluto, exceto pelas respirações tensas dos espectadores. O assassino rude e frio fechou os olhos e fez uma oração sem saber a quem. Tomou a criança e a envolveu totalmente em seus braços com um amor que nunca sentira ou recebera na vida. Um leve formigar percorreu seu corpo, dos pés até a cabeça e da cabeça para os lábios levando-o a depositar instintivamente um suave beijo sobre a testa do bebê. A criança estremeceu de leve e em alguns segundos chorava a plenos pulmões como se tivesse acabado de nascer. Com um sorriso a devolveu para a mãe e recebeu de volta um olhar de profunda gratidão. Porém, o momento mágico foi quebrado pelos gritos da multidão. Cada um ali queria o seu milagre e estava disposto a tudo para conseguir chegar até o milagreiro.

A pressão da multidão se tornou insuportável e Tobias percebeu o risco da mãe e da criança serem pisoteadas pela massa insana. Do seu corpo enorme fez um escudo humano, sofrendo as lesões de mãos que tentavam agarrá-lo. Com esforço hercúleo conseguiu levar a jovem mãe até a porta do seu barraco e a empurrou delicadamente para dentro:

—Há uma janela nos fundos, foge por ela.

A jovem tocou por um segundo o rosto do homem que se interpunha entre ela e a multidão e o calor daquele gesto renovou a determinação dele:

—Vai agora, o povo está fora de controle. Não aguento muito mais – arfou.

Ela fechou relutantemente a porta, não sem antes elevar a voz para ser ouvida por cima dos gritos de “Milagreiro!” e dizer:

—Ele vai se chamar Tobias!

Aliviado ao ouvir a tranca lá dentro ser acionada, Tobias encostou a testa na madeira rude da entrada do seu barraco, sentindo que as frágeis paredes de tapume cederiam em breve. Agradeceu intimamente, salvar aquela criança fora o único sucesso que desejara de verdade. Com um sentimento até então desconhecido de serenidade, foi virando lentamente. Dentre em pouco, descobriria se seria capaz de devolver a própria vida ou não. A multidão equivocadamente acreditando que o Milagreiro os preteria e tentava fugir, mudara o tom e o discurso, passando do deslumbramento à revolta. Imprecações eram jogadas sobre ele cada vez com maior violência e não demorou para a violência passar da palavra à ação.

Quando a madrugada chegou, apenas o corpo de um homem alto, forte, de cabelos longos e desgrenhados jazia sem vida na calçada. Seu corpo não era mais do que uma massa disforme e ensanguentada, mas o seu rosto marcado pela grande cicatriz, milagrosamente preservado, era a imagem da paz.

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