“Realizar um tal feito seria transcender a mágica. E contemplei, sem a sombra da dúvida, uma visão magnífica do que poderia significar a invisibilidade para um homem — o mistério, o poder, a liberdade”. Estas são as palavras de Griffin, o físico que desenvolve a fórmula para se tornar o Homem Invisível, personagem do escritor H. G. Wells. Apesar da empolgação inicial, a realidade não correspondeu às expectativas. Absolutamente só, a invisibilidade se converteu na sua ruína, descobriu Griffin na história de Wells. Na vida real, também é.
O que nos torna humanos é o potencial intrínseco para progredir em todos os sentidos, social, intelectual, emocional e moral. Porém, toda a chance de progresso, seja de que tamanho e direção, é nula se o ser se torna invisível. E não me refiro ao personagem de Wells, que é uma ficção, mas às pessoas invisíveis que se encontram pelas ruas da cidade. A numerosa população de indigentes sobre as quais desconhecemos o rosto, o nome, a história. Entre eles, alguns capitularam e, sem esperança, aceitam a invisibilidade, outros lutam desesperadamente para manter sua identidade.
De um trabalho social com moradores de rua que tive a oportunidade de acompanhar, trago dois exemplos. Ao servir uma senhora de idade indefinida pelo mau trato, sentada desanimadamente sobre alguns cobertores baratos, a voluntária deixou cair no chão sujo da sarjeta parte dos copos descartáveis que utilizava e os separou para jogar no lixo. A mulher olhou para ela e disse “não tem problema, pode usar, só eu vi” – e sorriu compreensiva, colocando-se resignadamente na posição de “ninguém”. Alguns passos adiante, um senhor se ergueu, lépido, e pediu reiteradamente “tira uma foto minha!”. Questionado sobre seu nome, respondeu com energia e lucidez “José Paulino da Silva, e tenho 63 anos”, espontaneamente revelando que estava nas ruas por um problema de alcoolismo, iniciado na juventude, quando foi trabalhar num alambique. Ao contrário da mulher, sobre a qual ninguém se lembrou de perguntar o nome, José não quer ser esquecido e não renunciou ao direito de ser alguém.
Algumas pessoas argumentariam que para indivíduos como estes “não tem mais jeito”, entretanto, como afirmar se não experimentar, sem dar uma chance de mudança? Necessita amplos recursos, financeiro e acadêmico, assistentes sociais, psicólogos, médicos, pedagogos, mas se o nosso conhecimento enquanto humanidade intelectualizada evoluiu por que não os utilizamos?
Outros dirão que diante dos recursos financeiros escassos, é mais justo investir em ações preventivas, na infância e adolescência. De fato, isso é importantíssimo, mas como julgar o mérito se não sabemos se nós, nas mesmas circunstâncias que balizaram a vida dessas pessoas, não reagiríamos da mesma forma, acabando nas ruas, até pior? Por outro lado, é tolerável tratar os moradores de rua em pleno século 21 exatamente igual como os tratavam na Idade Média?
É preciso mudar essa realidade e para mudá-la é preciso vê-los. São pessoas como nós, imperfeitas e carentes. Esse foi o recado que, visivelmente, o sr. José me deu ontem à noite e que hoje compartilho com vocês.
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