“Esse ano, em Verkhoiansk, uma cidadezinha na Sibéria, no Círculo Ártico, fez 38º C. Um lugar de frio polar com calor de verão de Copacabana...”
—Que loucura! Total inversão! - se espantou, mas a voz monocórdia do apresentador do jornal acabou por fazer as suas pálpebras se fecharem. Puxou a almofada mais para perto, afofou o enchimento como se um gato fosse e se acomodou no sofá. Que mal faria dormir um pouco ali mesmo?
Descobriu o mal assim que abriu os olhos novamente e fez menção de levantar. As costas doendo, o ciático gritando e o pescoço travado pela posição inadequada da cabeça durante... Durante a noite toda, a julgar pela claridade que entrava pela janela!
Aos poucos, conseguiu desenrolar e erguer o corpo, passos hesitantes até que a musculatura acordasse definitivamente. Esticou os braços, espreguiçou, desligou a TV sem nem prestar atenção ao que passava. Isso que dá querer ficar bem informado, da próxima vez vou ver um filme de ação – prometeu a si mesmo, e foi lentamente para a cozinha. Talvez ainda restasse um pouco de leite na geladeira...
Um barulho vindo de lá o alertou... Um ladrão?! Preciso reforçar as trancas urgentemente, pensou. Olhou em volta, pegou o bastão da cortina que esperava há semanas para ser colocado no lugar e empunhando confiantemente a arma improvisada com as duas mãos correu direto na direção do intruso, gritando – o elemento surpresa era o melhor aliado:
—Fora daqui!
Surpreso, o funcionário uniformizado deu um pulo para trás:
—Que é isso seu Cléber? Sou eu, Dorival. Não está me reconhecendo?
Cléber baixou a arma e a guarda diante da visão inofensiva do velhinho:
—Quem é você?
—Andou bebendo de novo, seu Cléber? Que graça! Venha cá, seu café está pronto, pode ser aqui na copa mesmo ou prefere na sala de jantar?
Um farto café da manhã estava posto sobre uma mesa que até então Cléber não tinha. De onde viera o móvel? Desde a mudança pretendia comprar uma, mas o dinheiro estava curto por conta do aluguel.
Sem compreender o que se passava, mas vencido pelo aroma delicioso do café e do pão quente sobre a mesa, resolveu sondar o desconhecido enquanto comia:
—Eu não bebi, quer dizer, bebi um pouco...
—O senhor sabe o que o médico disse, nada de álcool...
—Uma ou duas doses é até salutar...
—Não para quem tem o seu nível de pressão arterial, uma hora explode...
—Mudando de assunto, como é o seu nome mesmo?
—Dorival.
—E você trabalha para mim?
—Há dez anos. Sou seu mordomo desde que comprou a mansão.
—Que mansão? Eu moro aqui...
—Não, o senhor morava aqui quando era pobre, depois comprou a grande...
—Que idiotice! Se eu tenho uma mansão, por que não estou nela agora?
—Porque quis aproveitar a obra do heliponto e fazer a reforma geral. Como sempre conservou esse imóvel como lembrança dos tempos difíceis, nós dois vamos ficar aqui estes meses, para o senhor não ser importunado pelo barulho das máquinas e operários. Não tem o conforto necessário, mas entendo a nostalgia...
—Ah, quer dizer que eu sou rico...
—Claro, faz tempo.
—Tá bom, vou deixar assim, se você é doido, é um doido que cozinha muito bem. Esse pão que você faz é uma delícia...
—A massa vem da França toda a semana, preparada por um chef. Eu só faço assar.
—Se é o que você diz... – com louco a gente não discute, pensou. Terminou a refeição e foi se trocar. Pretendia ir até o módulo da polícia na rua debaixo. Falaria pessoalmente, o velhinho deveria ser das vizinhanças, coitado, provavelmente esclerosado...
Ainda ouviu Dorival dizer:
—Suas roupas para hoje já estão passadas e dobradas sobre a cama...
Sacudiu a cabeça, mas no quarto, foi exatamente o que encontrou. Trocou-se e buscou as autoridades próximas, explicando o caso exótico.
—Ah, seu Cléber – riu o policial – sempre brincalhão...
Já começava a perder a cabeça. Ele já estava atrasado para o trabalho e o policial fazendo pouco dele.
— Olha, se você não pode me ajudar, chama um colega que possa – seu tom foi duro.
O soldado se retesou e ficou sério:
—Pode deixar, nós vamos averiguar. Vou chamar o Cabo Honório, é a pessoa certa para isso.
Ah não, pior não podia ser! O Cabo era conhecido pela arrogância e truculência. Mas já estava feito. Aguardou.
O policial voltou acompanhado de uma versão estranha do Honório. Solícito e sorridente, ele garantiu que cuidaria de tudo.
—Por favor, seja gentil com o Dorival, ele é confuso, mas bonzinho.
—Pode deixar, seu Cléber, vou tratar dele como trato do meu avô... Aliás, vou fazer melhor, vou primeiro conversar com a psicóloga e pedir orientação.
O Cabo saiu deixando Cléber boquiaberto. A psicologia de Honório, todos conheciam, era a do porrete! Que mudança!
Bom, melhor assim - e conferiu as horas. Estava realmente atrasado para o trabalho. Tentou um carro pelo aplicativo, não dava mais tempo de tomar o transporte público, mas não havia nenhum disponível. Olhou em frente, para o antigo ponto de táxi da praça.
—Puxa! Só tem aquele idiota do Carlinhos no ponto!
Sem tempo para mais demora, decidiu por ele mesmo. Já havia prometido nunca mais falar com o motorista homofóbico e preconceituoso que destratara seu amigo há um ano, se recusando a deixá-lo embarcar no seu carro.
Entrou no veículo e secamente falou:
—Vamos para o Centro!
Carlinhos o saudou com um animado “bom dia”. Cléber estranhou o tom, mas nem esse tratamento fez sua carranca diminuir. Permaneceu calado.
O motorista deu de ombros e sorriu, resignado. Parecia não estranhar o comportamento do cliente. Cléber, para deixar ainda mais clara a distância entre eles, colocou os fones de ouvido e enfiou a cara no celular, porém não conseguia prestar atenção ao que via, pensando nos estranhos acontecimentos do dia.
O celular de Carlos tocou. Ele conferiu quem ligava, deu uma olhada de soslaio para o passageiro e considerando que ele estava absorto no que fazia, atendeu a chamada, falando em voz baixa:
—Oi amor, querido, que bom te ouvir... Ontem foi lindo. O jantar, a música... Não consigo parar de olhar a aliança no meu dedo... Já contei para mamãe, agora só falta o pai, esse é difícil de aceitar. Quem sabe, né? Eu sei, à noite a gente fala, estou com passageiro – desligou rapidamente o aparelho e olhou pelo retrovisor para confirmar se o cliente continuava distraído. Infelizmente não. Cléber olhava para ele com os olhos arregalados e a boca aberta.
Fazendo um muxoxo de desagrado, o taxista avisou:
—Se você é um desses homófobos chocado com o fato de um gay querer casar e ser feliz pode descer do meu carro, que nem lhe cobro a corrida até aqui! Estou cansado de ser incompreendido e desrespeitado! Não vou aturar mais preconceito calado!
—Não, não - se apressou em dizer Cléber – respeito muito! É que você mudou tanto! Até outro dia, era você o preconceituoso...
—Olha, só ser for preconceito contra a maldade e a estupidez, porque, de resto, sempre fui assim. Você deve estar me confundindo com outra pessoa...
Cléber não disse mais nada a viagem inteira. Na calçada, em frente ao prédio em que trabalhava, permaneceu parado algum tempo, atordoado pelo inusitado da manhã. Por fim, decidiu entrar e foi se voltando lentamente, quando escutou:
—O que mais dói é ser invisível! Trabalho aqui há anos e ele faz que nem me vê... Elite branca!
Cléber se virou para ver os dois homens próximos a ele. Um deles lhe pareceu familiar, mas não identificava de onde o conhecia. Resolveu tirar o assunto a limpo, não ofendera ninguém e não merecia ouvir aquilo:
—Olha amigo, eu não te conheço e não tenho obrigação de te cumprimentar. Claro, que independente disso, poderia lhe desejar um bom dia, mas a verdade é que estou tendo uma manhã complicada e eu... Eu te conheço? – perguntou, agora que observava o homem negro mais de perto.
—Claro, que conhece, sou o Plínio! Trabalho para você há quatro anos! E, aliás, estou esperando aquela promoção que me prometeram. Aqueles que entraram comigo já cresceram na empresa, só eu não tenho meu trabalho reconhecido e olha que sou tão ou mais competente do que eles! É triste ser preterido por causa da cor! Há tempo queria dizer isso, mas você não tem tempo para me receber! Se quiser me demitir pelo que eu disse, que seja!
Num fio de voz, Cléber conseguiu dizer:
—Passa no RH para ver sua promoção... – e virou-se de vez, entrando rapidamente no prédio. Não podia ser, dizia para si mesmo, já tonto com os acontecimentos. O Plínio que conhecia era seu supervisor, era branco e descaradamente racista!
O que estava acontecendo? Um mundo às avessas?! Não teve tempo para maiores elucubrações, pois a contadora da empresa, agitada, o interceptou:
—Cléber! Que dia para chegar atrasado! Estão todos esperando por você na sala de reuniões! Onde é que você está com a cabeça? Essa pode ser a última chance de a empresa permanecer com as portas abertas! São mais de trezentos empregos em jogo! Você não pensa em quantos homens e mulheres, chefes de família, dependem de você? Vamos logo! – e saiu arrastando um Cléber estupefato prédio a dentro.
Na porta do elevador ela perguntou:
—Cléber! Você está bem? Está pálido, minha nossa, vai desmaiar, segura... Cléber!!
Só o que ele ouvia era a porta do elevador abrindo e fechando. Sentiu que precisava fazer um esforço para abrir os olhos, mas as pálpebras lhe pesavam. Muito longe ainda escutava lhe chamarem...
—Cléber!!
O grito assustado da namorada finalmente o tirou do torpor em que estava e ele despertou.
—Graças a Deus! – viu Aninha exclamar, antes de se deslocar para conter as abas da janela que abriam e fechavam enlouquecidas com a ventania lá fora. —Cruzes, que frio! Aqui está parecendo o Ártico, reclamou ela esfregando os braços à mostra pela camiseta decotada. Quem diria esse clima nos trópicos!
Cléber se acomodou melhor:
—Aninha, eu não sou rico, não é? Não sou dono da empresa?
Ela acariciou a face ansiosa dele antes de responder:
—Definitivamente, você não é rico, querido, e odeia o dono da empresa. Aliás, o chama de capitalista selvagem, especialmente quando ele aparece na TV e é aplaudido por seu trabalho de inovação.
—Não, não acho que ele seja de todo ruim... Pensando bem, ele dá oportunidade a muita gente. Muitas famílias dependem dele.
Aninha se surpreendeu com a mudança, mas não quis comentar, o namorado parecia abalado. Simplesmente o escutava.
—Sabe o que seria bom? Que um dia, um dia apenas que fosse, cada pessoa pudesse ficar no lugar daquele que critica. Sabe, que as coisas se invertessem um pouco, o suficiente para que cada um sentisse na pele o que o outro sente.
—Nossa Cléber, que profundo! O que foi que te deu?
—Nada não, só um sonho mesmo...
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